Perfil no Instagram da Margem Direita | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Redes Sociais
Edição 273

A nova cara do humor político

Sátira digital desafia o discurso oficial e reacende o debate sobre liberdade de expressão no Brasil

A sátira política no Brasil tem tradição antiga. No século 19, Angelo Agostini usava a charge como crítica ao Império. Criador do personagem Nhô Quim, fundou publicações como a Revista Illustrada, com tiragem de até 8 mil exemplares semanais — número expressivo para a época. Usava a imagem como forma de denúncia: caricaturas de Dom Pedro II e de ministros, comentários visuais sobre corrupção, censura e autoritarismo. Era uma crítica que prescindia do texto. Como descreve Marcelo Balaban, autor do livro Poeta do Lápis: A Trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial, “o que fazia com que seus desenhos fossem reconhecidos como caricatura era a intenção, esta bastante clara, de expor o ridículo, o grotesco das pessoas e situações que pretendia criticar”.

Em 1969, O Pasquim atualizou essa prática durante o regime militar. Criado pelo cartunista Jaguar e pelos jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral, o semanário misturava jornalismo informal, entrevistas provocadoras e ilustrações que satirizavam tanto o governo quanto a oposição. Mesmo com vigilância constante, o jornal circulava com tiragens que superavam os 100 mil exemplares. Para Márcio Pinheiro, autor do livro Rato de Redação: Sig e a História do Pasquim, o jornal “era subversivo sem ser engajado politicamente; era anárquico e engraçado; era de fácil leitura sem ser banal; era genialmente simples sem ser simplório”.

No final dos anos 1990, surgiu a revista Bundas, idealizada por Ziraldo e composta por parte da mesma equipe do Pasquim — entre eles Millôr Fernandes, Laerte, Jaguar e Luis Fernando Verissimo. A publicação, lançada como uma sátira direta à revista Caras, misturava charges, colunas e reportagens com tom debochado, propondo um jornalismo alternativo engajado e crítico ao governo de Fernando Henrique Cardoso. Como destacou o editorial de lançamento: “A revista chega para dizer as coisas às claras e por inteiro”.

Nas décadas seguintes, a televisão foi o principal veículo de difusão da sátira política no Brasil. Programas como Planeta dos Homens e, mais tarde, TV Pirata, inovaram ao inserir críticas sociais e políticas com humor e personagens caricatos. No fim dos anos 1990, o Casseta & Planeta levou esse modelo ao horário nobre, satirizando figuras públicas, escândalos do governo e temas controversos com aval da audiência e da emissora.

Recentemente, um dos programas que mais se destacaram no uso da sátira política foi o Custe o Que Custar (CQC), exibido pela Rede Bandeirantes entre 2008 e 2015. O programa se notabilizou por mesclar jornalismo e humor com ousadia e sarcasmo, especialmente em quadros como “Proteste Já” e “Brasil Profundo”, que expunham irregularidades em istrações públicas e cobravam diretamente políticos e gestores. O CQC levantava questões sérias, importantes e muitas vezes incômodas para os políticos, utilizando o humor como ferramenta para fazer jornalismo. A abordagem crítica do CQC, com perguntas diretas e tom debochado, incomodava autoridades e, ao mesmo tempo, aproximava o público jovem da política, demonstrando o poder mobilizador da sátira na mídia tradicional.

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No comando do CQC, o apresentador Marcelo Tas retomava um trabalho de décadas anteriores. Incorporando o personagem Ernesto Varela, criado por ele nos anos 1980, Tas já desafiava os limites entre humor e jornalismo ao abordar figuras públicas com perguntas desconcertantes e tom irônico. Exibido inicialmente na TV Gazeta e depois na MTV, o “repórter” Varela circulava em ambientes políticos e eventos oficiais adotando uma linguagem cômica e ingênua, que revelava contradições do discurso oficial e expunha o ridículo das respostas institucionais. A estratégia antecipava o que o CQC viria a consolidar anos depois: o humor como método para interrogar o poder.

Essa tradição reaparece hoje com nova linguagem e ferramentas. Criado em 2014 pelo catarinense Paulo Vitor Souza, o Canal Hipócritas ou a ganhar projeção nacional a partir da paródia “Bolsomito”, gravada na véspera da eleição presidencial de 2018, que sagrou o candidato Jair Bolsonaro como o 38º presidente do Brasil. Em entrevista a Oeste, o integrante Augusto Pacheco afirmou que “o humor ajuda a criar senso crítico nas pessoas, ajuda a fazê-las pensar”.

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O grupo já teve vídeos excluídos pelo YouTube e, para driblar a censura, decidiu criar sua própria plataforma de s. “A partir do momento em que precisamos discutir previamente se é permitido ou não falar sobre isso ou aquilo, já estamos num processo de censura”, disse Augusto. “O Brasil está indo para o buraco por causa do cerceamento de liberdade pelo STF.”

Nos últimos anos, novos criadores intensificaram esse tipo de abordagem, agora com uso intensivo de inteligência artificial e redes sociais. Um deles é o designer Lucas Gabriel. Atuante desde 2016, ele ou a se posicionar politicamente em 2022. “Tinha uma convicção tão grande da minha identidade, de quem era, do que pensava, que decidi continuar”, disse. “Se as pessoas estão deixando de me seguir por causa do meu pensamento, do que penso, beleza, então que vá.”

A partir de 2023, Lucas ou a usar IA para criar conteúdo político. “Com a IA, a gente tem liberdade de fazer esse tipo de conteúdo”, explicou. “Antes, eu teria de fazer esse papel ou contratar um ator.” Agora, com os recursos disponíveis, é possível criar com total autonomia e impacto visual direto. Primeiro com imagens estáticas, depois com vídeos animados, entre personagens, trilhas e narrações. Um de seus vídeos, a paródia “Bebê Rouborn”, alcançou 11 milhões de visualizações no Instagram.

Outro perfil que ganhou alcance no uso da sátira com inteligência artificial é o Margem Direita, no Instagram. Fundado em julho de 2024, o perfil inicialmente publicava discursos de figuras conservadoras proeminentes, como Enéas Carneiro, Margaret Thatcher, Roger Scruton, Olavo de Carvalho e Ronald Reagan. No entanto, foi com a comédia que o Margem Direita recebeu destaque e atingiu mais de 150 mil seguidores em menos de um ano. Atualmente, o perfil alcança milhões de visualizações com vídeos e imagens que ironizam o governo, ministros do STF e temas sensíveis da agenda progressista.

O vídeo mais assistido do perfil, com mais de 19 milhões de visualizações, retrata a infância de Lula de forma caricata, marcada por miséria e ignorância. Com dublagem do youtuber Nando Moura, o presidente repete: “Sou analfabeto, minha mãe era analfabeta, meus irmãos todos analfabetos, meus primos analfabetos, meus cunhados eram analfabetos, meu cachorro analfabeto, meu gato analfabeto”. A capa do vídeo retrata Lula com trajes acadêmicos segurando um diploma com a palavra “analfabeto”.

Antenado no noticiário político, o Margem Direita costuma brincar com os temas mais atuais do debate público. A montagem mais recente, datada da última quarta-feira, 11, mostra o ministro Fernando Haddad com uma mandioca de tamanho descomunal em suas mãos, com os dizeres “pacotão fiscal”. O perfil sintetiza, na prática, o novo campo de disputa simbólica onde a sátira com IA se afirma como linguagem política de oposição.

A evolução das ferramentas de inteligência artificial tem acelerado a sofisticação da sátira digital. O pesquisador Jonas Gonçalves, doutor em mídia e tecnologia pela Unesp, observa que “os avanços são inegáveis e evidentes” e que estamos “num estágio considerável de evolução, porque há um investimento massivo por parte das grandes empresas de tecnologia”. Segundo ele, a IA permite que “mesmo pessoas sem muito conhecimento técnico consigam produzir coisas de qualidade”, o que pulveriza o alcance.

Um marco recente nessa trajetória foi o lançamento do Veo 3, apresentado pelo Google em maio deste ano. A ferramenta é capaz de gerar vídeos com qualidade fotorrealista, áudio sincronizado, efeitos sonoros e narração coerente a partir de simples comandos de texto. Segundo Josh Woodward, vice-presidente do Google Labs e do projeto Gemini, “agora você dá um prompt e seus personagens podem falar”. A promessa, segundo ele, é de uma nova etapa de criação audiovisual: “Estamos entrando em uma nova era de criação com geração combinada de áudio e vídeo incrivelmente realista”. O o ao Veo 3 está a usuários do Google AI Ultra, com planos pagos, e já está disponível em 70 países, inclusive o Brasil.

Um exemplo recente de sátira viral gerada por IA é o vídeo “Cristiano Taxado”, produzido pelo perfil cortesnextt. Ao inserir o rosto do ministro Fernando Haddad sobre cenas do atleta Cristiano Ronaldo, o vídeo narra: “Ele tá carregando a taxa, ele tá carregando o imposto… Ele tá taxando a família brasileira”. O material foi amplamente compartilhado, inclusive pelo vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ), e integra a série de críticas que surgiram com a atuação do Ministério da Fazenda durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Schmock, chargista desde 2013 e colaborador de Oeste, também aposta no humor visual como ferramenta política. Criador do personagem Gadu Ananauê, ele explica que a figura representa “o esquerdista brasileiro, sul-americano, seu ufanismo barato, idiota, super-raso, que adora Che Guevara, Fidel Castro, Lula e tudo mais”. Ele define seu processo de escolha de temas como uma busca pela “coisa mais bizarra”: “A cena política brasileira provavelmente está entre as mais caóticas do mundo”.

O cartunista também comenta o poder simbólico da charge como instrumento de desgaste da autoridade: “O humor faz com que os outros deem risada da vítima, do satirizado”, reflete. “Se um cara se acha bom demais, se acha perfeito, se acha um ministro intocável, um presidente, um ditador, um cara que não tem erros e falhas, se alguém ri dele, ele perde essa aura.”

Ambos relatam episódios de censura indireta. Lucas menciona remoção de postagens com marcação de fake news sem que contivessem informações falsas. Schmock denuncia limitação algorítmica: “Desde que se estabeleceu, meu número não muda”, explicou. “Toda semana mostra 1,3 mil seguidores novos, como é que eu perco o mesmo número? Como eu posso ganhar e perder o mesmo número exato de pessoas?”

Em paralelo ao avanço das ferramentas, tramita no Congresso um projeto de lei que pretende estabelecer regras gerais para o uso da inteligência artificial no Brasil. O texto prevê a vedação de sistemas que explorem vulnerabilidades ou que “possam acarretar discriminação direta, indireta, ilegal ou abusiva”, e classifica como de “risco excessivo” aplicações que empreguem “técnicas subliminares com o objetivo de induzir a pessoa natural a se comportar de forma prejudicial” ou que envolvam ranqueamento social por órgãos públicos.

Embora não trate diretamente do uso humorístico da IA, o projeto pode afetar criadores que usam ferramentas de geração de imagem e vídeo para satirizar o poder. Mesmo com críticas à proposta de regulação das redes, os criadores mantêm seu trabalho. “A verdade se espalha muito”, resume Lucas. “Se você vai criar algo, crie com a verdade. Porque aí, sim, vai viralizar, vai engajar, vai dar certo.”

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O recente caso do comediante Leo Lins ilustra os riscos crescentes para o humor crítico no Brasil. Recentemente, ele foi condenado pela Justiça Federal a mais de oito anos de prisão por piadas proferidas durante um show de stand-up, posteriormente publicado no YouTube. A decisão considerou que seu conteúdo configurava crimes de discriminação e preconceito contra múltiplos grupos considerados “vulneráveis”, como pessoas com deficiência, indígenas, negros e nordestinos. A sentença destacou que “o lugar do humor não é terra sem lei” e que “a sociedade chegou em um ponto de evolução de direitos em que não se pode itir retrocessos como a prática de crimes sob pretexto de humor”.

A juíza Bárbara de Lima Iseppi baseou a sentença, entre outras normas, na Lei nº 14.532/2023 — sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva —, que alterou a Lei do Crime Racial para incluir como agravante o chamado “racismo recreativo”, previsto quando a ofensa é feita no contexto de atividades artísticas ou culturais. A nova lei determina ainda que o juiz considere como discriminatória qualquer atitude ou tratamento que cause “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida” a grupos minoritários, mesmo sem definição clara de quais seriam esses grupos.

Lins também atua na sátira política. Em um de seus shows, ironizou uma fala de Lula durante discurso oficial na África: “Temos uma profunda gratidão ao continente africano por tudo que foi produzido durante 350 anos de escravidão”. O comediante rebateu: “Quem que agradece a escravidão? Um senhor de engenho”, disse. “É o mesmo que você agradecer o sexo pra uma mulher que você estuprou.” Na mesma apresentação, Lins argumentou que, se ele mesmo tivesse dito algo semelhante, “estaria sendo investigado no Ministério Público”. Em tom sarcástico, a crítica evidenciava o tratamento desigual a depender de quem profere determinada frase.

Para Lucas Gabriel, a condenação do comediante representa um recado direto do poder contra qualquer tipo de provocação. “Eles estão usando isso para calar todos os humoristas”, afirmou. “Vejo que é um bode expiatório para todo mundo, no campo inteiro.” Mesmo que não aprecie seu estilo de comédia, o criador visual argumenta que “é errado você prender um cara pelas piadas que as pessoas estão pagando para ouvir no show dele”.

Com ferramentas digitais e novas linguagens, a sátira política continua a provocar — como fez no século 19, nos anos 1970, 1980, 1990 e como continua a fazer neste 2025. A comédia incomoda porque ainda é uma das armas mais poderosas que existem no mercado.

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